Acreditava ser dona de si
Tola.
Não era dona de si a muito.
Na verdade, nunca fora.
Nunca se pertenceu
Sempre a outros,
Sempre a vários
Menos a ela própria
Desde o primeiro momento
Seu choro sofrido do nascimento
Sabia que se perdia ali
A levaram pra longe da mãe
E cometeram o maior ato de tortura
Furaram-lhe as duas orelhas
Não pediram licença,
Aos pais –talvez-
Mas nunca a ela
E nem deveriam
Desde já saberia seu lugar
Submetida as vontades e julgamentos alheios
O dourado das suas orelhas
Ardiam como marca de ferro quente
Nos bichos que estão no pasto
Porém o que se seguia
Era um amor sem medir
Que atenuavam as dores
As primarias e as por vir
Não sem cobrar nada, porém
Percebeu logo que todo esse afeto tinha um preço
Tratada como princesa
Deveria se portar como tal
Seu corpo foi sendo novamente submetido
A tudo e todos
E quase nunca a ela.
Aos três anos, não pode brincar de carrinho
Ou escolher outra cor
Aos cinco, disseram
Tira mão daí
Que pra menina isso é muito feio
Aos sete, queria fazer esporte
Mas com medo de que se tornasse bruta demais
Foi pro ballet
Não pode cortar o cabelo curto, aos oito
Porque a confundiriam com os meninos
Aos dez, ficou mocinha
E não pode mais usar bermuda curta
Que isso não são modos de dama
Nem falava alto
Nem brincava na rua
Pois tinha tarefas domésticas
Nunca podia escolher
E sempre que questionava
Recebia como resposta
Que o mundo era assim
Cresceu sob grades cor-de-rosa
Casou-se com um bom partido
Não que fosse da sua inteira vontade
Mas pelo que diziam parecia o certo
Foi mãe sem vontade nenhuma
Não de um, mas de três
E ainda assim
Lhe julgavam pelas estrias e celulites
Foi pra academia e fez dietas de fome
Sem vontade nenhuma
Precisou ouvir
Que se fosse deixada
A culpa seria do seu desleixo
Precisou ouvir
Que se os filhos aprontavam
É porque não tomava conta direito
Precisou ouvir
Que não trabalhava fora
Por que era folgada
Nada disso no entanto
Parecia lhe atingir
estava tão acostumada, a ser subjugada
Que vivia na inércia
Como uma maquina a seguir padrões
Nunca foi feliz com seu corpo
Nunca saciou suas vontades
Nunca teve um orgasmo
Nunca pediu por nada disso
Mas sua vida seguiu os conformes
Pois tinha cometido, talvez o maior dos pecados
Tinha nascido mulher.
E toda violência, lhe era justificada.
Gravura: Edward Hooper